Incursão à Canaã Millenial

Uma viagem esquizofrênica às terras prometidas do idealismo geracional

Mateus Rolim
12 min readJun 23, 2020
Imagem que compõe a promoção “Todos para o Lollapalooza” do banco Bradesco.

De mãos nas costas! Marco eu o compasso! Eia!

Dois a dois! Primeira posição! Marcha!

Todos para a central do meu rancor inebriante!

Ódio e insulto! Ódio e raiva! Ódio e mais ódio!

Morte ao burguês de giolhos,

cheirando religião e que não crê em Deus!

Ódio vermelho! Ódio fecundo! Ódio cíclico!

Ódio fundamento, sem perdão!

Fora! Fu! Fora o bom burguês!…

Ode ao Burguês

Mário de Andrade, 1922

Celebrou-se, nos dias 5, 6 e 7 de abril de 2019, a catarse coletiva da juventude prafrentex do Brasil. Segundo os números oficiais da organização, a oitava edição do Lollapalooza Brasil reuniu 246 mil cucas frescas no Autódromo de Interlagos para a realização do festival que, munidos com logogramas coloridos e atrações de peso do paradoxal mainstream alternativo, se propõe a ser o Woodstock de uma geração que ainda não sabe muito bem o que é e o que pretende ser. A programação contou com as vertentes musicais cuja essência se aproxima da estrutura do pop, embora a roupagem seja diversa: ecos da psicodelia setentista, a agressividade lírica do hip hop contemporâneo, a estética de brasilidade neotropicalista das bandas nacionais.

A identidade cultural do público que compareceu nos vales e picos verdejantes de Interlagos para três dias de música, comida gourmet e moda vintage encontra-se entre a ingenuidade sedutora da utopia hippie, a revolta impotente do movimento punk e o niilismo adolescente do grunge. Ou talvez uma mistura negacionista da herança artística desde os idos de 1960, ou até mesmo uma macarronada de jovens que, enquanto suam em bicas no calor dos trópicos, insistem em idealizar a atmosfera londrina de frieza e elegância. É difícil acurar o perfil de uma platéia que parece tão igual, mas que mantém com fervor a crença de ser o mais diferente possível.

A própria história do festival aponta por este caminho: precisamente no ano de 1990, Perry Farrell, frontman da Jane’s Addiction, capitalizou o boom do rock alternativo e fundou o Lollapalooza tendo como premissa ser a turnê de despedida da banda pelos Estados Unidos e Canadá. A primeira edição ocorreu em 1991, contou com 26 apresentações em 21 cidades da América do Norte e durou de meados de julho até as derradeiras datas de agosto. A concepção do modelo da festa não focava exclusivamente na parte musical, sendo uma experiência cultural engajada com as temáticas sociais da atualidade: o espaço era preenchido com uma variedade diversificada de tendas, cabines e displays que exploravam uma série de questões políticas, ambientais e de direitos humanos.

Por sua vez, as primeiras andanças do Lollapalooza em solo tupiniquim marcaram o início de abril de 2012. Estima-se que 70,000 pessoas estiveram presentes no Jockey Club, em São Paulo, naquelas tardes de sexta-feira de sol escaldante e sábado chuvoso. O line-up que estreou o festival para o público brasileiro contou com 70 atrações divididas em cinco palcos; foram responsáveis por encabeçar as apresentações a banda americana Foo Fighters — conhecida por alguns tuíteiros como “o sapatênis do rock” — e os ingleses do Arctic Monkeys, até então entidade máxima de representação do indie rock.

De tudo isso, o que desabrocha na percepção como pipa no céu de brigadeiro é a manutenção do desejo noventista de emular os sonhos e vícios das gerações passadas. Robert Hilburn escreveu, em artigo para o Los Angeles Times de julho de 1991, que “de certa forma, tudo isso— organizado e estrelado por Jane’s Addiction — é uma resposta para todos os jovens fãs que adotaram com oração pessoal do rock: “traga de volta os ‘60s. A atmosfera do Lollapalooza brasileiro, tanto sonora quanto visual, apresenta uma configuração simbólica alinhada com uma espécie de nostalgia futurista, onde se é imaginado um futuro apenas para tornar o passado em algo ainda mais saudoso.

São Paulo pela estética da Pop Art. Design do artista Lobo.

Alguma coisa acontece no meu coração

É que quando eu cheguei por aqui eu nada entendi
Da dura poesia concreta de tuas esquinas
Da deselegância discreta de tuas meninas.

Sampa, de Caetano Veloso (1978)

O firmamento já se repartia em nesgas cinzentas quando o avião resolveu pousar na pista do Aeroporto Internacional de Congonhas. A excitação por estar em uma megalópole de mais de doze milhões de habitantes fazia latejar minha têmpora de desbravador urbano, um rapazeco do interior do já provinciano Rio Grande do Sul, e dali já pude estabelecer contato com a diversidade que esperava: uma confluência de vozes e sotaques criando uma sinfonia dodecafônica nos salões abarrotados do aeroporto; vogais espaçadas de bocas nordestinas por nascença, consoantes volumosas fechando em lábios que descendem do italiano, arranhados da fonética árabe, todos os espólios da migração que fez morada na capital paulista.

Primeira impressão: em São Paulo, tudo que existe está acontecendo ao mesmo tempo em todos os lugares. Meu exemplo: a calvice estoica do ex-governador José Serra, cercado por quatro robustos seguranças, desfilando numa das escadas rolantes de Congonhas. Já em um carro, admirei, com o porquê longe do compreensível, a magnitude de Sampa, cidade que se movimenta como um corpo orgânico colossal a todo vapor, locomotiva humana que é. Quedei embasbacado por horas no trânsito carregado até chegarmos nas imediações da Avenida Paulista, bairro Paraíso, onde se localizava o apartamento que seria meu pouso pelos próximos dias.

Caía a noite na terra da garoa enquanto eu subia os dezessete andares do prédio do SESC do logradouro que outrora fora batizado de Avenida das Acácias. A instalação possui um terraço panorâmico que oferece vista das artérias e veias capilares de São Paulo. Uma vez experenciada a paisagem urbana, é fácil repetir o paralelo: Éssepê é um organismo completo em suas hemácias, leucócitos, organelas. De fato, observa-la de cima oferta aos megalômanos certo devaneio existencial, uma prova irrefutável da pequenez do indivíduo frente ao amontoado de energia vacilante que transita andares abaixo. O número caoticamente exato de semáforos, faróis, luzes e buzinas afinando em jazzística melodia com o andejar dos orientais de terno e gravata, das meninas de cabelos arroxeados e dos ambulantes compenetrados servindo de base rítmica da composição que muda de tom a cada microssegundo.

Quando me dei por conta já fugia do frenesi do asfalto meditando com Monja Coen no carpete espezinhado da Livraria Cultura, logo antes de assistir um rapaz quebrar as lâmpadas de um bar na Augusta. Acidente, claro, como a infinidade de cousas-sem-querer que regem a estética em perpétuo movimento da cidade. Tomei cerveja, de pé, em um dos apêndices da rua que concentra a nova boemia paulista. Infelizmente não tive tempo o suficiente para desfrutar da vida noturna do que hoje chamo de “capital moral do Brasil”. Ainda assim, pude saborear seus aperitivos — que são tão ou mais apetitosos quanto o prato principal. São Paulo é uma cidade de muitos gostos, aromas, temperos e condimentos. Para se divertir na grandiloquente maionese sudestina basta abrir a boca e aguçar as narinas.

Chama a atenção a quantidade massiva de trabalhadores que, exaustos e minguados pela rotina inquieta da produção são-paulina, buscam nos bares a carícia do álcool. Também constato, apurando o olhar para não cometer injustiça, a larga quantia de flertes que ocorrem nas calçadas, nas portas de carro, nas mesas de restaurante. São Paulo é uma cidade de carências peculiares, uma cidade onde rapazes galanteiam garotas lançando mão de uma retórica pautada na autopromoção barata — em São Paulo todo mundo tem um quê de publicitário cocainômano. Sou capaz de capturar um revirar de olhos aqui, outro bocejo desinteressado acolá e os rapazes continuam em polvorosa a cuspir as novas tendências do design de produto, viagens de kombi pela América Latina, o progresso da microdosagem de LSD no Vale do Silício. Em São Paulo, se pechincha por pouco no jogo das intenções, qualquer meio-pensamento, qualquer meio-dito ou quase-falado assume grande valia.

Na minha boca o empapuço de quem trancou o verbo na goela por diversas vezes, pois sinto que devia ter dito mais, ao menos me engajado a interpelar alguém. Eis aí o macete, o truque de manjar São Paulo: existe uma linha tênue entre o convidativo e o desconfiado, a postura esperançosa e a expressão desiludida. São Paulo usa de seus súditos para armar fortaleza, encher de caco de vidro o muro de suas fronteiras. É característico o sentimento de estar alheio a um mundo que não vai esperar seus pares alcançá-lo, pelo contrário, vai seguir devorando, esmagando e triturando o que vê pela frente, seja de onde for. São Paulo é uma cidade-além, um protótipo de império movido por forças que não sabem da própria aparência, massas que nunca se olharam no espelho.

“[…] que é extraordinariamente impressionante”

A palavra, algumas vezes pronunciada como lollapalootza ou lalapaloosa, vem dos séculos XIX e XX, de uma expressão americana que significa “uma extraordinária ou incomum coisa, pessoa, ou evento; um exemplo excepcional ou circunstância.”

Os millenials representam um conceito chave da nomenclatura geracional: são eles os nascidos pouco antes da virada do milênio e que fomentam a composição demográfica das sociedades hiper conectadas do século XXI. O contexto de expansão tecnológica e hibridismo cultural fez com que esta geração desenvolvesse um modus operandi de processar informação um tanto ansiogênico. Em suma, a juventude pós-moderna nutre um desejo por autenticidade e felicidade que por vezes acaba sendo mercantilizado pelo capitalismo institucional.

Sob esta batuta erguem-se eu, o Autódromo de Interlagos e dezenas de milhares de quase-adultos fantasiados com o cabideiro de décadas atrás. Nas vielas do extremo-sul paulistano, adolescentes de pele parda trajando réplicas de marcas famosas vendem latas de cerveja em isopores. Estamos no curral que dá acesso à terra prometida, onde corre álcool e saliva alheia, do idealismo geracional: um imenso gramado verdejante cercado por três palcos de grandes dimensões e tendas com atrações musicais diversas e pequenas celebridades do meio virtual. Coisinha elementar de manual francês de sociologia.

A realidade é uma contradição intrínseca que mora no seio de qualquer tentativa de desbunde, por mais ingênua e pura que ela possa parecer, e existe algo de irônico na classe-média alta juvenil que, entre uma apresentação e outra, brinca de mandar o excelentíssimo Presidente da República Jair Bolsonaro sorver líquidos de um orifício cavernoso do corpo humano, mas é incapaz de reconhecer a injustiça gritante que se faz carne e osso nas redondezas do festival. Não há como esconder que a contradição também mora em mim, afinal torrei mais de mil barões para fazer etnografia pedante de uma moçadinha que só queria aplaudir uns gringos e fumar maconha em paz.

De fato, beira o impossível não sacolejar os quadris com as melodias indie pop de bandas como Portugal. The Man, The 1975 e Foals. Claro, arranjos que estão inscritos em uma semiosfera de elegância estrangeira, parte evidenciada pelo dançar estaqueado balangando os óculos escuros e as piteiras de cigarro indonésio; longe, por exemplo, da malemolência à brasileira evocada no samba ou no forró. Ainda assim, é gostoso o balanço da anglofonia, é certamente encorajador se sentir parte de uma cosmópole onde todos são jovens e belos e transgressores.

Indígenas sobem ao palco para expor a perseguição e genocídio aos povos originários e protestar pela demarcação de terras — são 5% da população e protegem 82% da biodiversidade do mundo. Os telões exibem mensagens favoráveis ao casamento entre homossexuais. Artistas homenageiam a figura de Marielle Franco e bandas em palcos secundários denunciam a exploração dos corpos negros. A causa progressista é um dos pilares do millenialismo, também pudera: as gerações anteriores vão morrer legando ao resto da humanidade uma bomba-relógio climática e socioeconômica. Por mais bem intencionadas que sejam as manifestações, no entanto, paira no ar aquele cheirinho adocicado de performance esperando o lucro de capital simbólico.

A fauna é diversa: há um bando de garotos de cabelos sebosos acompanhando as viradas do som eletrônico que emana de um palco que volta-e-meia cospe fogo pelos ares, estão suados e espumam pelo canto dos lábios empedrados. Outra turma de meninas acobreadas tiram fotografias nas paredes de madeira cobertas por lambe-lambes policromáticos de cima a baixo, adiante assisto os beijos mais aguacentos do que apaixonados de um casal recém-formado. O olho nu varre a sorte de camisas listradas da Renner e chapéus descolados, o patrimônio plástico do ajuntamento de ex-aspirantes a VJ da MTV. A beleza dos festivais está aí, dando na vista, em observar voyueristicamente o que cada um faz com aquele tipo de felicidade primitiva que surge, rodopia e vai embora como um vendaval litorâneo.

A lua é um naco amarelado no negrume do anoitecer paulistano. No palco principal, os Tribalistas vão destilando o repertório novelesco nas quase 78 mil pessoas que se aglomeram esperando o pop barroco da macacada do ártico. O Efeito Carlinhos Brown tem início: percurssões, gritos, frases de efeito e adereços de matriz africana desenhando um mosaico do brasileirismo comercial, a estranha atmosfera de apropriação cultural que borra as linhas entre capitalismo barato e cultura genuína, entre Rede Globo e terreiro de umbanda. Ao som do clássico Velha Infância, pesco uma menina a relatar o primeiro beijo à amiga, a narrativa intimista da maneira como, depois de tanto tempo, ela continuava a sentir o gosto marítimo das ferragens do aparelho ortodôntico do parceiro inundando o palato. Comovente, no mínimo. Soa o lá menor no violão de Marisa Monte, o público entoa, com furor, Já Sei Namorar, o hit de um longínquo 2002.

As duas primeiras fileiras do público estão quentes e úmidas como se uma galinha colossal estivesse a nos chocar abaixo de suas asas gigantes. Os corpos transpirantes estão em processo de desidratação e já não se acha uma gota de água para beber — os poucos que consomem líquidos ignoram qualquer conhecimento da fisiologia humana ao tomar cerveja a goles fartos. Pernas tiritam com vontade de urinar enquanto tentam encaixar no compasso dos riffs cativantes de Alex Turner e Jamie Cook. Os membros da banda de Sheffield estão trajados em ternos listrados e jaquetas de couro e no afã da idolatria alguns bravos guerreiros resistem até a última vez que o pé direito de Matt Helders aciona o bumbo, encerrando a overdose musical de quase oito horas de duração.

Um estouro. Depois um estampido chiado. Outro estalo sibilante. Ronco seco seguido de labaredas atacando as nuvens. Pequenas explosões de pólvora negra retumbando o éter luminífero. Os fogos de artifício abençoam o dia que se acabou. Encerrou-se a festa, foi-se a folia. É chegada a hora de sairmos do transe lollapalooziano, nós os jovenzinhos-cuca-legal que somos,e pôr os pés no banhado lodoso da vida real: aquela que nos engole com o barulho insuportável dos carros de aplicativos e o grudar invasivo das coxas que o metrô lotado comprime no espaço curto. Nosso sonho de respirar infinitas melodias por incontáveis dias tem de ser deixado no Autódromo junto com as curvas de Airton Senna; não há mais lugar para isto aqui fora, onde tudo é cinza e surdo.

De volta ao pampa

“Nenhum homem pode banhar-se duas vezes no mesmo rio” proferiu o pré-socrático Heráclito de Éfeso. Creio já ter me banhado inúmeras vezes em Porto Alegre, um rio de águas estanques, barragens de juncos antiquados. E me banhei novamente naquele final de dois mil e dezenove enquanto o táxi vencia o asfalto rachado da Avenida João Pessoa. Penso em São Paulo e penso também no zilhão de encontros fortuitos que aconteceriam caso minha morada sulista não estivesse chamando — uma ilusão narcísica de que nos trópicos paulistas boa fortuna aguarda o forasteiro; um amor com acento diferente, um emprego que fosse mais do que a lauda feita à pressa e a conta fácil do Banco do Brasil, desventuras de primavera embaladas por samba, rock e funk na paulicéia desvairada.

O Lollapalooza é uma experiência cultural agridoce, explico melhor: tem sua doçura, o açúcar da manifestação musical contemporânea, que pela necessidade comercial se faz maleável a qualquer ouvido, entretanto, a corrosão, a nota cáustica do evento faz-se sentir no excesso de futilidade que a persona do festival evoca. A materialização desse sentimento em propaganda talvez seja a prova cabal do desconforto que esta dissonância conceitual traz, ou seja, o reposicionamento de imagem que faz bancos parecerem as instituições mais autoconscientes e humanitárias do mundo é, no mínimo, um indício de que na selva errática do capitalismo tardio há lobos em pele de hipster. As artes, especialmente a música, não estão isentas do baile semiótico que está reconfigurando o juízo da sociedade atual.

Essas contradições permanecem como a força vital que pulsa em Interlagos, em São Paulo, nos rincões do Brasil. Pulsa, ademais, em Porto Alegre, um universo observável de probabilidades reduzidas se comparado com os demais. O táxista, um sujeito corpulento ostentando caprichado bigode, gira o rádio entre as frequências que emitem fragmentos de canções. O Parque da Redenção borbotoa em hectares verde e vivo. Nos ouvidos, a voz lamuriosa de Gilberto Gil diz que quase não falo, quase não sei de nada, sou como rês desgarrada nessa multidão boiada caminhando a esmo.

Mateus Rolim, junho de 2020

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